Bibliography / texts and reviews / Assembleia
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Assembleia
Estes três artistas convidaram-me a escrever um texto sobre os trabalhos que aqui apresentam. Conheço o trabalho que cada um deles tem vindo a desenvolver, o que facilita, por um lado, esta tarefa e que, ao mesmo tempo a dificulta. Perante esta aparente contradição, decidi o que já tinha decidido mas sem o saber. Assumi a única entrada que me estava destinada: escrever sobre cada um dos seus trabalhos do meu ponto de vista. Isto parece óbvio. E é. Importa esclarecer o seguinte: não sendo eu escritora nem tão pouco curadora, sou alguém que faz (desenhos), isto é, põe as mãos na massa, como se costuma dizer. É partir desta prática (mais prática que teórica) que me relaciono com os trabalhos que aqui são apresentados. Assembleia – é o título da exposição.
Um conjunto de representantes de uma comunidade que possuem poder de legislação. Este título é quase irónico, acabando por não sê-lo.
Vasco Futscher
Conjunto de cerâmicas. As peças aqui apresentadas, no seu conjunto, parecem ter saído de uma escavação. Podemos tomá-las por evidências de uma civilização arcaica. Reconhecemos pequenos obeliscos, partes de colunas, volutas e capiteis. Aqui o pequeno assume uma dupla função – transfere, boicotando, a suposta função do monumento para a escala da mão. Poderíamos dizer que a escala da mão é o centro da posse. Faço meu aquilo que me abarca. A mão é o princípio de uma casa menor aberta a captar o mundo envolvente. Obeliscos e colunas erguem-se do chão marcando o eixo vertical no nosso horizonte – primeiro eixo civilizacional, anuncia a lei dos seres bípedes destinados a viver levantados, a não sucumbir às tentações da horizontalidade.
Na nossa humana condição, acompanhamos o desmoronar dos eixos, frágeis em equilíbrio, edificamos o que insiste em curvar.
A natureza é sempre em si própria curva – dizia Duns Escoto. Acompanhemos a inclinação ao olhar para estas peças. A curvatura opera de vários modos, mesmo quando uma aparente verticalidade se anuncia: o seu primeiro sinal prende-se com o próprio material que se presta instantaneamente aos caprichos da mão. Modelar é encurvar. A mão, terminal do sistema nervoso e antena, simultaneamente, agarra a pasta informe imprimindo-lhe circunvalações, acumulações, marcas de dedos e acasos. Outras peças há em que a curvatura se anuncia através do eixo oblíquo. Dir-se-ía que estão a naufragar. Quase todas as peças se erguem (e desmoronam) a partir de uma base. Aqui a base recorta a inclinação, situa os pequenos monumentos crustáceos, atribuindo a cada um o seu chão.
Nuno Martinho
Vemos um conjunto de fotografias a cores. Não são auto-retratos, embora o mesmo rosto apareça em quase todas as imagens. Reconhecemo-lo ao mesmo tempo que deixa de ser um rosto. Não são máscaras. O domínio da máscara coincide com o domínio da pintura. Estas imagens não são pictóricas. São outra coisa. Vemos nelas elementos vagamente geométricos a ocultar um rosto sem nome. São retratos. São retratos não humanos. Um dispositivo foi montado, é nele que o corpo age baralhando-se, comprimido entre próteses, ensaiando uma violência lúdica. A cor é o primeiro grau de violência, ela situa-nos no jogo da ocultação. O inorgânico e o patético instalam-se. Eu não sou eu, nem sou outro. Não existe interioridade, tudo são peças de um jogo que estala. Homogeneidade – é esta a regra. Pele, plástico, metal, próteses, objectos e indícios de rosto reorganizam-se, compondo a presença plana do fantoche. Nada mais são do que pretextos para denunciar o corpo à sua exterioridade não humana. De entre as fotografias, há duas em que reconhecemos uma silhueta arredondada, concêntrica. É mais uma vez o inumano a apresentar-se, à velocidade de insecto. A escala aqui importa, ela gera o reconhecimento e a estranheza em simultâneo. O olhar tem que afunilar, como o camelo que atravessa a agulha, para depois ser expulso. Nada há aqui que nos envolva. Também não se trata de envolver. A precisa distancia da estranheza (e do jogo) assim o exigem. O olhar mergulha e retira-se, é esse o ciclo, à velocidade do cinemascópio. De entre as fotografias, há uma que interrompe todo este programa. Serve de contraponto. É um irónico final feliz assombrado (claro está). Vemos um carro, uma estada e uma paisagem. Mas o ponto de fuga é aparente. Estamos ainda enclausurados nas costas do insecto.
Ângela Dias
Ruínas
Conjunto de desenhos e de pequenas peças. Os desenhos pareçam ser feitos para o nosso olhar os engolir. Olhamos de relance, acto único, de uma só vez e viramos costas. Mas nada disso acontece por fim. Nada engolimos. Temos que olhar de novo, desenho a desenho, um de cada vez, somando o anterior com o presente. Um estranho reconhecimento do espaço acontece O percurso que a linha inscreve é largo e cuidadoso porque definitivo. É a linha que instala os limites da mancha. A cor obedece a uma regra de contraste, separa o exterior do interior, diferencia temperaturas e consistências. O território que instala é inequívoco, sabemos exactamente em que zona estamos. É isso que percorremos sem mais nada, sem saídas nem entradas. O que há a percorrer, é a integridade das superfícies sem rodeios. Afastamo-nos e um estranho reconhecimento do espaço acontece de novo. Olhamos para os desenhos todos juntos e fragmentos de um espaço maior parecem ter sido fixados no papel. Talvez fragmentos da vista aérea de um jardim desertificado, ou vista subaquática de recintos naufragados. Nada disso interessa agora. É preciso voltar atrás – fragmentos de um espaço maior parecem ter sido fixados no papel – descontinuamente. Em cada fragmento dá-se uma nova apresentação do espaço que, se nos aproximarmos, começa a ganhar as propriedades de um corpo. O que é que acontece aí? O reconhecimento de um corpo num espaço e o reconhecimento de um corpo que é espaço ao mesmo tempo. Acontece o desenrolar do corpo e o desdobramento do espaço. A cor pulsa dentro de limites concisos e a linha é uma faca. A mesma operação de corte repete-se nas peças de esferovite. Trata-se de conseguir o inaudito: mais do que cortar os corpos, cortar a cor. No fim, nada há de fragmentário. O que vemos são unidades fechadas em convulsão. E elas assinalam: os limites do espaço são os limites do corpo, perecíveis e metamórficos.
Francisca Carvalho
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Assembleia
Estes três artistas convidaram-me a escrever um texto sobre os trabalhos que aqui apresentam. Conheço o trabalho que cada um deles tem vindo a desenvolver, o que facilita, por um lado, esta tarefa e que, ao mesmo tempo a dificulta. Perante esta aparente contradição, decidi o que já tinha decidido mas sem o saber. Assumi a única entrada que me estava destinada: escrever sobre cada um dos seus trabalhos do meu ponto de vista. Isto parece óbvio. E é. Importa esclarecer o seguinte: não sendo eu escritora nem tão pouco curadora, sou alguém que faz (desenhos), isto é, põe as mãos na massa, como se costuma dizer. É partir desta prática (mais prática que teórica) que me relaciono com os trabalhos que aqui são apresentados. Assembleia – é o título da exposição.
Um conjunto de representantes de uma comunidade que possuem poder de legislação. Este título é quase irónico, acabando por não sê-lo.
Vasco Futscher
Conjunto de cerâmicas. As peças aqui apresentadas, no seu conjunto, parecem ter saído de uma escavação. Podemos tomá-las por evidências de uma civilização arcaica. Reconhecemos pequenos obeliscos, partes de colunas, volutas e capiteis. Aqui o pequeno assume uma dupla função – transfere, boicotando, a suposta função do monumento para a escala da mão. Poderíamos dizer que a escala da mão é o centro da posse. Faço meu aquilo que me abarca. A mão é o princípio de uma casa menor aberta a captar o mundo envolvente. Obeliscos e colunas erguem-se do chão marcando o eixo vertical no nosso horizonte – primeiro eixo civilizacional, anuncia a lei dos seres bípedes destinados a viver levantados, a não sucumbir às tentações da horizontalidade.
Na nossa humana condição, acompanhamos o desmoronar dos eixos, frágeis em equilíbrio, edificamos o que insiste em curvar.
A natureza é sempre em si própria curva – dizia Duns Escoto. Acompanhemos a inclinação ao olhar para estas peças. A curvatura opera de vários modos, mesmo quando uma aparente verticalidade se anuncia: o seu primeiro sinal prende-se com o próprio material que se presta instantaneamente aos caprichos da mão. Modelar é encurvar. A mão, terminal do sistema nervoso e antena, simultaneamente, agarra a pasta informe imprimindo-lhe circunvalações, acumulações, marcas de dedos e acasos. Outras peças há em que a curvatura se anuncia através do eixo oblíquo. Dir-se-ía que estão a naufragar. Quase todas as peças se erguem (e desmoronam) a partir de uma base. Aqui a base recorta a inclinação, situa os pequenos monumentos crustáceos, atribuindo a cada um o seu chão.
Nuno Martinho
Vemos um conjunto de fotografias a cores. Não são auto-retratos, embora o mesmo rosto apareça em quase todas as imagens. Reconhecemo-lo ao mesmo tempo que deixa de ser um rosto. Não são máscaras. O domínio da máscara coincide com o domínio da pintura. Estas imagens não são pictóricas. São outra coisa. Vemos nelas elementos vagamente geométricos a ocultar um rosto sem nome. São retratos. São retratos não humanos. Um dispositivo foi montado, é nele que o corpo age baralhando-se, comprimido entre próteses, ensaiando uma violência lúdica. A cor é o primeiro grau de violência, ela situa-nos no jogo da ocultação. O inorgânico e o patético instalam-se. Eu não sou eu, nem sou outro. Não existe interioridade, tudo são peças de um jogo que estala. Homogeneidade – é esta a regra. Pele, plástico, metal, próteses, objectos e indícios de rosto reorganizam-se, compondo a presença plana do fantoche. Nada mais são do que pretextos para denunciar o corpo à sua exterioridade não humana. De entre as fotografias, há duas em que reconhecemos uma silhueta arredondada, concêntrica. É mais uma vez o inumano a apresentar-se, à velocidade de insecto. A escala aqui importa, ela gera o reconhecimento e a estranheza em simultâneo. O olhar tem que afunilar, como o camelo que atravessa a agulha, para depois ser expulso. Nada há aqui que nos envolva. Também não se trata de envolver. A precisa distancia da estranheza (e do jogo) assim o exigem. O olhar mergulha e retira-se, é esse o ciclo, à velocidade do cinemascópio. De entre as fotografias, há uma que interrompe todo este programa. Serve de contraponto. É um irónico final feliz assombrado (claro está). Vemos um carro, uma estada e uma paisagem. Mas o ponto de fuga é aparente. Estamos ainda enclausurados nas costas do insecto.
Ângela Dias
Ruínas
Conjunto de desenhos e de pequenas peças. Os desenhos pareçam ser feitos para o nosso olhar os engolir. Olhamos de relance, acto único, de uma só vez e viramos costas. Mas nada disso acontece por fim. Nada engolimos. Temos que olhar de novo, desenho a desenho, um de cada vez, somando o anterior com o presente. Um estranho reconhecimento do espaço acontece O percurso que a linha inscreve é largo e cuidadoso porque definitivo. É a linha que instala os limites da mancha. A cor obedece a uma regra de contraste, separa o exterior do interior, diferencia temperaturas e consistências. O território que instala é inequívoco, sabemos exactamente em que zona estamos. É isso que percorremos sem mais nada, sem saídas nem entradas. O que há a percorrer, é a integridade das superfícies sem rodeios. Afastamo-nos e um estranho reconhecimento do espaço acontece de novo. Olhamos para os desenhos todos juntos e fragmentos de um espaço maior parecem ter sido fixados no papel. Talvez fragmentos da vista aérea de um jardim desertificado, ou vista subaquática de recintos naufragados. Nada disso interessa agora. É preciso voltar atrás – fragmentos de um espaço maior parecem ter sido fixados no papel – descontinuamente. Em cada fragmento dá-se uma nova apresentação do espaço que, se nos aproximarmos, começa a ganhar as propriedades de um corpo. O que é que acontece aí? O reconhecimento de um corpo num espaço e o reconhecimento de um corpo que é espaço ao mesmo tempo. Acontece o desenrolar do corpo e o desdobramento do espaço. A cor pulsa dentro de limites concisos e a linha é uma faca. A mesma operação de corte repete-se nas peças de esferovite. Trata-se de conseguir o inaudito: mais do que cortar os corpos, cortar a cor. No fim, nada há de fragmentário. O que vemos são unidades fechadas em convulsão. E elas assinalam: os limites do espaço são os limites do corpo, perecíveis e metamórficos.
Francisca Carvalho